quinta-feira, 26 de agosto de 2010

FREUD PENSADOR DA CIVILIZAÇÃO: OS DOMÍNIOS DA ARTE

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Ter, 19 de Abril de 2005 00:00
Regina Steffen
A psicanálise, em sua pré-história, é uma teoria que tenta dar conta da clínica da doença nervosa. Nasce com uma vocação terapêutica, destinada a tratar aquilo que até então era intratável. É um tipo de clínica praticada por Breuer e inventada por uma histérica, Ana O.
Freud entra nessa história quando esse primeiro caso já havia sido encerrado. Ele é o parceiro do Dr. Breuer na elaboração de um texto que lança as primeiras luzes sobre a estrutura psíquica de casos de histeria semelhantes a esse primeiro.
Estamos em 1893 (5), Ana O. já não é mais atendida por Breuer, sendo justamente para tentar entender os descaminhos que esse tratamento conheceu, que Breuer o relata a Freud. A técnica usada ainda é a hipnose, o método, o catártico. Freud interessa-se por esse tipo de tratamento e o aplica em alguns casos, iniciando assim sua trajetória naquilo que virá a se tornar a psicanálise.
A psicanálise nasce, assim, tributária da mulher, de seu sofrimento.
Anos mais tarde, Freud observará que a neurose é o sofrimento que a civilização causa; é seu mal-estar. A histeria é a expressão por excelência desse mal-estar no século XIX, e Ana O. é o ícone do mal daquele século. Ela é também um exemplo do uso civilizatório que o recalque pode ter.
Do recalque o homem civilizado não escapa, porém o sofrimento não precisa ser sua única consequência possível. Muito pelo contrário, o sofrimento neurótico é totalmente inútil em termos civilizatórios.
Coartada pelo recalque, a libido pode ser desviada para um fim não sexual, resultando disso uma ação que produz um laço social, uma ação que se dirige ao OUTRO e a ele se enlaça. A vivência nesse caso, não é mais de sofrimento; essa ação promove o avanço da civilização.
É Ana O. quem mais uma vez dá o exemplo disso. Apesar de um tratamento interrompido de modo desastrado, ela consegue, por si só – mas, quem sabe ajudada pelo tipo absolutamente inédito de escuta que seu sofrimento recebeu do Dr. Breuer – transformar sua dor em um gesto de alcance e utilidade social. Foi a criadora do Serviço Social, e a isso dedicou-se pelo resto de sua vida.
A essa transmutação na natureza da energia sexual, Freud posteriormente chamará "sublimação" e a ela atribuirá a construção da civilização. A civilização é obra do recalque e da sublimação. A sublimação produz a cultura e todos os bens culturais dos homens.
O domínio das artes fornecerá a chance da análise desse processo. Será justamente numa análise de um artista (L. Da Vinci) que Freud elaborará seu texto mais acabado sobre o mecanismo da sublimação .
A sublimação, no entanto, nunca é total, restando sempre um quinhão de sofrimento. É o sofrimento do homem moderno. Moderno aqui entendido no sentido do homem que vem suceder o homem primitivo; não no sentido de homem contemporâneo. O homem moderno é o homem infeliz, aquele para quem a felicidade é feita de momentos, mas nunca é eterna; é o homem expulso do paraíso, condenado a vagar e a construir sua vida de seu próprio suor. É o homem habitado pelo mal-estar provocado pelo recalque, por uma força que impede a realização de seus desejos mais egoístas. Ele tem que se segurar em nome do contrato social, não podendo mais ser impetuoso, genioso, violento como o homem primitivo poderia. O recalque cria, garante e mantém o laço social. O homem moderno não está mais sozinho. Agora há o OUTRO a ser considerado, respeitado, reconhecido.
Será com a análise de uma outra obra de outro grande artista, agora Michelângelo, que Freud analisará o homem moderno. O Moisés de Michelângelo é a representação monumental desse homem que somos todos nós: o homem que se contém, que reconhece a lei, que a ela se submete, que a preserva e que por isso vive habitado por um mal-estar.
Cada época tem seu mal-estar específico, pois cada uma conta com estruturas familiares e sociais diversas em termos dos lugares simbólicos que determinam o recalque. No final do século XIX esse mal-estar se chamava histeria. Hoje, início do século XXI, ele se chama depressão, pânico. Entre uma época e outra o mundo mudou, a família mudou, alterando com isso a eficiência simbólica do agente do recalque.
Quando Freud se debruça sobre o processo civilizatório ele não está fazendo um simples exercício de psicanálise aplicada. A civilização é fruto e resultado daquilo que a psicanálise identifica em cada ser humano. Dito de outro modo: o ser humano é estruturalmente social, o OUTRO é parte integrante de seu psiquismo.
É isso que será possível observar em "Psicologia das massas e Análise do Ego" (1920-21), texto escrito numa época na qual o nazismo começara a crescer na Europa, despertando em Freud a curiosidade de entender a massa que aos poucos se formava, guiada pelo sentimento anti-semita. Isso que parece então psicanálise aplicada ao social, à psicologia de grupo, acaba por evidenciar que não há a psicanálise de um lado tratando do sujeito, e uma psicologia social, de outro. Toda a análise que se aplica ao grupo revela que as estruturas em jogo na massa de indivíduos, estão presentes na constituição de cada sujeito. O sujeito humano é social já em seu nascimento.
Nos tempos de Breuer e do método catártico, a técnica e sua incipiente teoria, estavam restritas à doença.
Quando a psicanálise nasce, já um enorme passo é franqueado. Freud a elabora a partir de descobertas que faz analisando seus próprios sonhos. O Complexo de Édipo é a principal dessas descobertas. Ora, Freud não é um doente como aquelas histéricas, e no entanto, aquilo que se aplica a ele, também cai como uma luva nos doentes. Começa-se aqui a elaborar uma teoria que se aplica ao psiquismo humano, já então ampliado num diapasão que vai do normal ao patológico numa mesma linha contínua. A teoria serve ao humano em geral, e sua técnica não é mais prioritariamente terapêutica, ela é antes de mais nada análise psíquica: psicanálise.
Mas, é evidente que construir uma teoria psíquica que se aplica a todos os seres humanos exige uma evidência de universalização dos conceitos que não podem se restringir ao psiquismo de Freud exclusivamente. Tampouco bastaria que os analisandos servissem de comprovação, afinal eles eram os "doentes". Freud precisa então, para o embasamento consistente de suas descobertas, de evidências universais.
Voltar o ferramental teórico da psicanálise para as obras da civilização é o modo de encontrar a universalização da teoria psicanalítica. Essa é a tese que Renato Mezan desenvolve em sua obra "Freud, Pensador da Cultura" .
Da pré-história às artes (passando pelas manifestações religiosas, pelo nascimento da moral, do direito e pelo comportamento das massas), cada uma dessas produções culturais fornecerá a comprovação de que aquilo que Freud descobriu em seu próprio inconsciente, que constatou em cada um de seus pacientes, é também, e sobretudo, universal.
A psicanálise pode então se alinhar às teorias científicas e legitimamente sustentar-se como uma teoria do psiquismo humano.

Regina Steffen
Campinas/março/2005.

Freud, S. Un Recuerdo Infantil De Leonardo DeVinci, in Obras Completas, II vol., Biblioteca Nueva, Madri, Espanha, 1973.
Idem, ibidem, El "Moisés" de Miguel Angel, II vol.
Idem, ibidem, Psicologia de las Masas y Analisis del "Yo", III vol.
Mezan, R. Freud, Pensador da Cultura. Editora Brasiliense, 5ª Edição, 1990, São Paulo.





OBS.: Esse texto é interesante para o estudo de artes!
Freud explica!!!!